A possibilidade de explorar a Amazônia fez com que se especulasse um futuro grandioso e próspero para a região, na década de 70. Com as oportunidades de melhoria de vida, muitas pessoas saíram dos seus estados em direção à grande empreitada “transamazônica”, vitrine do governo militar para mostrar ao mundo a potência que viria ser o Brasil. Porém, no lugar da grandiosa promessa de desenvolvimento vieram ondas de epidemias, acidentes e má infraestrutura que ocasionaram na morte de tantos trabalhadores e pequenos agricultores.
BR-230: o sonho de integração do período da ditadura militar
Construída durante o governo do presidente Emílio Garrastazu Médici (1960 a 1974), durante os anos 70, a BR-230, conhecida também como rodovia Transamazônica, atualmente tem 4.260 quilômetros, e fez parte do projeto do programa de integração nacional do governo militar. O objetivo do ambicioso projeto era interligar a região norte ao resto do país, além de trazer migrantes nordestinos para ocuparem o local, que para os olhares do governo, era inóspita.
A rodovia é caracterizada como “rodovia federal transversal”, pois vai do leste ao oeste, sendo seu marco zero, do lado oeste, o município de Lábrea no Amazonas e o ponto inicial da parte leste a cidade nordestina Cabedelo do estado de Paraíba. A BR também perpassa algumas das principais cidades do Pará, como Altamira, Marabá e Itaituba.
No início, a Rodovia Transamazônica era planejada para alcançar 8 mil quilômetros de trajeto pavimentado, o que não chegou a ser concretizado por inúmeros problemas de infraestrutura e pelo grande grau de degradação no solo que se tornou infértil. Outro problema foi a não pavimentação da rodovia, tornando-a intransitável por metade do ano.
Mortes na Transamazônica
À medida que se derrubavam a floresta para dar prosseguimento ao grande empreendimento, as doenças começavam a tomar a vida dos operários e dos moradores locais. Conforme a pesquisa “Morte, saúde e ditadura na construção da Transamazônica”, do historiador e professor do programa de pós-graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia, Cesar Martins, muitos dos relatos das pessoas que presenciaram os anos de construção da rodovia eram de lembranças marcadas por dores e perdas.
“Os moradores relatam com emoção terem presenciado muitas mortes por doenças, acidentes, picadas de insetos e cobras. Muitos rememoram a perda de parentes próximos ou amigos, ao narrarem histórias de suas trajetórias vivendo na BR-230”, diz a pesquisa.
Os trabalhadores e moradores tiveram que enfrentar epidemias de várias doenças como a malária e a mansonelose, causada pela transmissão do mosquito borrachudo ou chamado popularmente como “pium”. Uma das histórias evidenciadas no estudo de Cesar é a da Gertrude, nome fictício, migrante que trabalhou como agricultora no Pará. Hoje, é aposentada e mora em Araurá, município do Pará.
“Muita gente morria de malária e leishmaniose. Meu marido pegou malária, mas não morreu porque eu e meu filho carregamos ele a quilômetros de distância do hospital. Já morreu em 1975, “batido”. Em Altamira, o hospital era o melhor naquele tempo, os atendimentos eram bons. Quando chegava na SESP [Secretaria de Estado da Saúde] em Altamira, os médicos sempre estavam lá e de vez em quando chegavam junto da gente”, disse Gertrude.
Dizer que alguém morreu “batido” era comum pelas pessoas que trabalhavam e moravam nos arredores da construção da BR-320. A palavra se refere aos atropelamentos, uma das principais mortes por aqueles que passavam pelas estradas empoeiradas durante o verão amazônico que dificultavam a visibilidade. Outro fator que tornava a rodovia perigosa eram os relevos disformes do piso que levavam a acidentes trágicos como o que acometeu o marido de Gertrude.
Após o marido contrair a malária, Gertrude conta que ela e o filho o carregaram em uma rede para que ele fosse atendido no hospital. A prática de transportar os doentes por meio de uma rede, a qual cada lado era amarrado com uma vara e segurado por duas pessoas era frequente.
Muitas pessoas acabavam morrendo durante o longo trajeto por não conseguirem chegar até os locais de atendimento de saúde, que estavam localizados a centenas de quilômetros de distância das residências e dos locais de plantação onde trabalhavam. A corrida por atendimento ao longo da rodovia ocorria com mais constância em períodos do inverno amazônico que impedia o deslocamento a longas distâncias.
Medidas profiláticas e censura
Os diversos acidentes e vidas perdidas que ocorreram ao longo das obras da rodovia BR-230 eram o maior temor da população, ainda mais com as notícias propagadas sobre as recentes tragédias relacionadas a incidência de epidemias que ocorreram na construção da Estrada de ferro Madeira-Mamoré, inaugurada em 1912 no estado de Rondônia.
O temor também era vivido pelo próprio governo militar, pois tinha interesse em alavancar sua imagem com o sucesso do empreendimento no meio do território amazônico que seria automaticamente frustrado com o surgimento de epidemias. De acordo com a pesquisa do historiador Cesar Martins, o governo militar apostou em medidas profiláticas para evitar o surgimento de epidemias.
“A crença na prevenção como solução para evitar surtos epidêmicos era tão forte que diversos relatórios de órgãos oficiais expunham as medidas que adotariam como forma de evitar problemas aos trabalhadores e até mesmo às populações da região. Nos discursos, fica evidente que muitos tinham certeza da eficácia das políticas de saneamento e prevenção, incluindo o uso indiscriminado do DDT, para o controle das doenças”, conta o estudo.
As medidas de prevenção que utilizavam grande quantidade de inseticidas também eram questionadas na época por ambientalistas e especialistas. No fim, não foram suficientes para evitar as doenças epidêmicas. Assim, para evitar as notícias que começavam a circular a respeito da propagação das doenças, o governo começou a censurar aqueles que falavam sobre as epidemias. Além disso,
“O governo seguia esta lógica ao buscar impedir o surgimento de epidemias e, quando não obtinha sucesso com as políticas implementadas, as informações sobre mortos e doentes eram controladas ou censuradas para que o regime não sofresse pressões sobre a propagandeada estrada”, diz a pesquisa.
FONTE: EM TEMPO